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Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1875.
ÍNDICE
POTIRA
NIaNI
A CRISTa-NOVA
JOSe BONIFaCIO
A VISaO DE JACIuCA
A GONcALVES DIAS
OS SEMEADORES
A FLOR DO EMBIRUcU
LUA NOVA
SABINA
uLTIMA JORNADA
OS ORIZES
POEMA PRESENTE NA PRIMEIRA EDIcaO
CANTIGA DO ROSTO BRANCO
POTIRA [1]
Os Tamoios, entre outras presas que fizeram, levaram esta índia, a
qual pretendeu o capitao da empresa violar; resistiu valorosamente
dizendo em língua brasílica: “Eu sou crista e casada; nao hei de fazer
traicao a Deus e a meu marido; bem podes matar-me e fazer de mim
o que quiseres.” Deu-se por afrontado o barbaro, e em vinganca lhe
acabou a vida com grande crueldade.
VASC., CR. DA COMPANHIA DE JESUS, LIV. 3º
I
Moca crista das solidoes antigas,
Em que aurea folha reviveu teu nome?
Nem o eco das matas seculares,
Nem a voz das sonoras cachoeiras,
O transmitiu aos seculos futuros.
Assim da tarde estiva as auras frouxas
Tenue fumo do colmo no ar se perde;
Nem de outra sorte em moribundos labios
A humana voz expira. O horror e o sangue
Da miseranda cena em que, de envolta
Coos longos, magoadíssimos suspiros,
Crista Lucrecia, abriu tua alma o voo
Para subir as regioes celestes,
Mal deixada memoria aos homens lembra.
Isso apenas; nao mais; teu nome obscuro,
Nem tua campa o brasileiro os sabe.
II
Ja da fervida luta os ais e os gritos
Extintos eram. Nos baixeis ligeiros
Os tamoios incolumes embarcam;
Ferem coos remos as serenas ondas
Ate surgirem na remota aldeia.
Atras ficava, lutuosa e triste,
A nascente cidade brasileira, [2]
Do inopinado assalto espavorida,
Ao ceu mandando em coro inuteis vozes.
Vinha ja perto rareando a noite,
Alva aurora, que a vida acorda as selvas,
Quando a aldeia surgiu aos olhos torvos
Da expedicao noturna. a praia saltam
Os vencedores em tropel; transportam
as cabanas despojos e vencidos,
E, da vigília fatigados, buscam
Na curva leve rede amigo sono,
Exceto o chefe. Oh! esse nao dormira
Longas noites, se a troco da vitoria
Precisas fossem. Traz consigo o premio,
O desejado premio. Desmaiada
Conduz nos bracos tremulos a moca
Que renegou Tupa, e as rudes crencas [3]
Lavou nas aguas do batismo santo.
Na rede ornada de amarelas penas
Brandamente a depoe. Leve tecido
Da cativa gentil as formas cobre;
Veste-as de mais a sombra do crepusculo,
Sombra que a tíbia luz da alva nascente
De todo nao rompeu. Inquieto sangue
Nas veias ferve do índio. Os olhos luzem
De concentrada raiva triunfante.
Amor talvez lhes lanca um leve toque
De ternura, ou ja sofrego desejo;
Amor, como ele, asperrimo e selvagem,
Que outro nao sente o heroi.
III
Heroi lhe chamam
Quantos o hao visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrarios
E avantajar-se nos certeiros golpes
Aos mais fortes da tribo. O arco e a flecha
Desde a infancia os meneia ousado e afoito;
Cedo aprendeu nas solitarias brenhas
A pleitear as feras o caminho.
A forca opoe a forca, a astucia a astucia,
Qual se da onca e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao colo os dentes
Dos contrarios vencidos. Nem dos anos
O numero supera o das vitorias;
Tem no espacoso rosto a flor da vida,
A juventude, e goza entre os mais belos
De real primazia. A cinta e a fronte
Azuis, vermelhas plumas alardeam,
Ingenuas galas do gentio inculto.
IV
Da cativa gentil cerrados olhos
Nao se entreabrem a luz. Morta parece.
Uma so contracao lhe nao perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto dela, cruzados sobre o peito
Os bracos, Anaje contempla e espera;
Sofrego espera, enquanto ideias negras
Estao a revoar-lhe em torno e a encher-lhe
A mente de projetos tenebrosos.
Tal no cimo do velho Corcovado
Proxima tempestade engloba as nuvens.
Subito ao seio turgido e macio
Ansiosas maos estende; inda palpita
O coracao, com desusada forca,
Como se a vida toda ali buscasse
Refugio certo e ultimo. Impetuoso
O vestido cristao lhe despedaca,
E a luz ja viva da manha recente
Contempla as nuas formas. Era acaso
A síncope chegada ao termo proprio,
Ou, no pejo ofendida, as maos estranhas
A desmaiada moca despertara.
Potira acorda, os olhos lanca em torno,
Fita, ve, compreende, e inquieta busca
Fugir do vencedor as maos e ao crime...
Mísera! opoe-se-lhe o irritado gesto
Do asperrimo guerreiro; um ai lhe sobe
Angustioso e triste aos labios tremulos,
Sobe, murmura e sufocado expira.
Na rede envolve o corpo, e, desviando
Do terrível tamoio os lindos olhos,
Entrecortada prece aos ceus envia,
E as faces banha de serenas lagrimas.
V
Longo tempo correra. Amplo silencio
Reinou entre ambos. Do tamoio a fronte
Pouco a pouco despira o torvo aspecto.
Ao trabalhado espírito, revolto
De mil sinistros pensamentos, volve
Benigna calma. Tal de um rio engrossa
O volume extensíssimo das aguas
Que vao enchendo de pavor os ecos,
Vencendo no arruído o vento e o raio,
E pouco a pouco atenuando as vozes,
Adelgacando as ondas, tornam mansas
Ao primitivo leito. Ei-lo se inclina,
Para tomar nos bracos a formosa
Por cujo amor incendiara a aldeia
Daquelas gentes palidas de Europa.
Sente-lhe a moca as maos, e erguendo o rosto,
O rosto inda de lagrimas molhado,
Do coracao estas palavras solta:
“— La entre os meus, suave e amiga morte,
Ah! porque me nao deste? Houvera ao menos
Quem escutasse de meus labios frios
A prece derradeira; e a santa bencao
Levaria minha alma aos pes do Eterno...
Nao, nao te peco a vida; e tua, extingue-a;
Um so alívio imploro. Nao receies
Embeber no meu sangue a ervada seta;
Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possa
Ter em sagrado leito o ultimo sono!”
Disse, e fitando no índio avidos olhos,
Esperou. Anaje sacode a fronte,
Como se lhe pesara ideia triste;
Crava os olhos no chao; lentas lhe saem
Estas vozes do peito:
“Oh! nunca os padres
Pisado houvessem estas plagas virgens!
Nunca de um deus estranho as leis ignotas
Viessem perturbar as tribos, como
Perturba o vento as aguas! Rosto a rosto
Os guerreiros pelejam; matam, morrem.
Ante o fulgor das armas inimigas
Nao descora o tamoio. Assaz lhe pulsa
Valor nativo e raro em peito livre.
Armas, deu-lhas Tupa novas e eternas
Nestas matas vastíssimas. De sangue
Estranhos rios hao de, ao mar correndo,
Tristes novas levar a patria deles,
Primeiro que o tamoio a frente incline
Aos inimigos peitos. Outra forca,
Outra e maior nos move a guerra crua;
Sao eles, sao os padres. Esses mostram
Cheia de riso a boca e o mel nas vozes,
Sereno o rosto e as brancas maos inermes;
Ordens nao trazem de cacique alheio,
Tudo nos levam, tudo. Uma por uma
As filhas de Tupa correm tras eles,
Com elas os guerreiros, e com todos
A nossa antiga fe. Vem perto o dia
Em que, na imensidao destes desertos,
Ha de ao frio luar das longas noites
O paje suspirar sozinho e triste
Sem povo nem Tupa!”
VI
Silenciosas
Lagrimas lhe espremeu dos olhos negros
Esta lembranca de futuros males.
“Escuta!” diz Potira. O índio estende
Imperioso as maos e assim prossegue:
Tambem com eles foste, e foi contigo
Da minha vida a flor! Teu pai mandara,
E com ele mandou Tupa, que eu fosse
Teu esposo; vedou-mo a voz dos padres,
Que me perdeu, levando-te consigo.
Nao morri; vivi so para esta afronta;
Vivi para esta insolita tristeza
De maldizer teu nome e as gracas tuas,
Chorar-te a vida e desejar-te a morte.
Ai! nos rudes combates em que a tribo
Rega de sangue o chao da virgem terra
Ou tinge a flor do mar, nunca a meu lado
Teu nobre vulto esteve. A aldeia toda,
Mais que o teu coracao, ficou deserta.
Duas vezes, mimosas rebentaram
Do lacrimoso cajueiro as flores,
Desde o dia funesto em que deixaste
A cabana paterna. O extremo lume
Expirou de teu pai nos olhos tristes;
Piedosa chama consumiu seus restos,
E a aldeia toda o lastimou com prantos.
Nao de todo se foi da nossa vida;
Parte ficou para sentir teus males.
Antes que o ultimo sol a melindrosa
Flor do maracuja cerrasse as folhas
Um sonho tive. Merencorio vulto,
Triste como uma fronte de vencido,
Cor da lua os cabelos venerandos,
O vulto de teu pai : “Guerreiro (disse),
Corre a vizinha habitacao dos brancos,
Vai, arranca Potira a lei funesta
Dos palidos pajes; Tupa to ordena;
Nos bracos traze a fugitiva corca;
Vincula o teu destino ao dela; e tua.”
“Impossível! Que vale um vago sonho?
Sou esposa e crista. Ímpio, respeita
O amor que Deus protege e santifica;
Mata-me; a minha vida te pertence;
Ou, se te pesa derramar o sangue
Daquela a quem amaste, e por quem foste
Lancar entre os cristaos a dor e o susto,
Faze-me escrava; servirei contente
Enquanto a vida alumiar meus olhos.
Toma, entrego-te o sangue e a liberdade;
Ordena ou fere. Tua esposa, nunca!”
Calou-se, e reclinada sobre a rede,
Potira murmurava ignota prece,
Olhos fitos no proximo arvoredo,
Olhos nao ermos de profunda magoa.
VII
o Cristo! em que alma penetrou teu nome
Que lhe nao desse o balsamo da vida?
Pelo vento dos seculos levado,
Vidente e cego, o maximo dos seres,
Que fora do homem nesta escassa terra,
Se ao misterio da vida lhe nao desses,
o Cristo! a eterna chave da esperanca?
Filosofia estoica, ardua virtude,
Criacao de homem, tudo passa e expira.
Tu so, filha de Deus, palavra amiga,
Tu, suavíssima voz da eternidade,
Tu perduras, tu vales, tu confortas.
Neste sonho iriado de outros sonhos,
Varios como as feicoes da natureza,
Nesta confusa agitacao da vida,
Que alma transpoe a derradeira idade
Farta de algumas passageiras glorias?
Torvo e o ar do sepulcro; ali nao vicam
Essas cansadas rosas da existencia
Que as vezes tantas lagrimas nos custam,
E tantas mais antes do ocaso expiram.
Flor do Evangelho, nuncia de alvos dias,
Esperanca crista, nao te ha murchado
O vento arido e seco; es tu vicosa
Quando as da terra languidas inclinam
O seio, e a vida lentamente exalam.
Esta a consolacao ultima e doce
Da esposa indiana foi. Cativa ou morta,
Antevia a celeste recompensa
Que aos humildes reserva a mao do Eterno.
Naquele rude coracao das brenhas
A semente evangelica brotara.
VIII
Das duas condicoes deu-lhe o guerreiro
A pior, — fe-la escrava; e ei-la aparece
Da sua aldeia aos olhos espantados
Qual fora em dias de melhor ventura.
Despida vem das roupas que lhe ha posto
Sobre as polidas formas uso estranho,
Nao sabido jamais daqueles povos
Que a natureza ingenua doutrinara.
Vence na gentileza as mais da tribo,
E tem de sobra um sentimento novo,
Pudor de esposa e de crista, — realce
Que ao índio acende a natural volupia.
Simulada alegria lhe descerra
Os labios; riso a flor, escasso e dubio,
Que mal lhe encobre as vergonhosas magoas.
a voz do seu senhor acorre humilde;
Nao a assusta o labor; nem dos perigos
Conhece os medos. Nas ruidosas festas,
Quando ferve o cauim, e o ar atroa [4]
Pocema de alegria ou de combate,
Como que se lhe fecha a flor do rosto.
Ja lhe descai entao no seio opresso
A graciosa fronte; os olhos fecha,
E ao ceu voltando o pensamento puro,
Menos por si, que pelos outros pede.
Nem so o ardor da fe lhe abrasa o peito;
Lacera-lho tambem agra saudade;
Chora a separacao do amado esposo,
Que, ou cedo a esquece, ou solitario geme.
Se, alguma vez, fugindo a estranhos olhos,
Nao ja crueis, mas cobicosos dela,
Entra desatinada o bosque antigo,
E a dor expande em lobregos solucos,
Coo doce nome acorda ao longe os ecos,
Farta de amor e prodiga de vida,
Ouve-as a selva, e nao lhe entende as magoas.
Outras vezes pisando a ruiva areia
Das praias, ou galgando a penedia
Cujos pes orla o mar de nívea espuma,
As ondas murmurantes interroga;
Conta ao vento da noite as dores suas;
Mas... fieis ao destino e a lei que as rege,
As preguicosas ondas vao caminho,
Crespas do vento que sussurra e passa.
IX
Quando, ao sol da manha, partem as vezes,
Com seus arcos, os destros cacadores,
E alguns da rija estaca desatando
Os nos de embira as rapidas igaras,
a pesca vao pelas ribeiras proximas,
Das esposas, das maes que os lares velam,
Grata alegria os coracoes inunda,
Menos o dela, que suspira e geme,
E nao aguarda doce esposo ou filho.
Triste os ve na partida e no regresso,
E nessa melancolica postura,
Semelha a acacia langue e esmorecida,
Que ja de orvalho ou sol nao pede os beijos.
As outras... — Raro em labios de felizes
Alheias magoas travam. Nao se pejam
De seus olhos azuis e alegres penas
Os saís sobre as arvores pousados,
Se ao perto voa na campina verde
De anuns lutuoso bando; nem os trilos
Das andorinhas interrompe a nota
Que a juriti suspira. — As outras folgam
Pelo arraial dispersas; vao-se a terra
Arrancar as raízes nutritivas,
E fazem os preparos do banquete
A que hao de vir mais tarde os destemidos
Senhores do arco, alegres vencedores
De quanto vive na agua e na floresta.
Da cativa nenhuma inquire as magoas.
Contudo, algumas vezes, curiosas
Virgens lhe dizem, apiedando o gesto:
— “Pois que a taba voltaste, em que teus olhos
Primeiro viram luz, que magoa funda
Lhes destila tao longo e amargo pranto,
Amargo mais do que esse que nao busca
Recatado silencio?” — E as doces vozes
A crista desterrada assim responde:
— “Potira e como aquela flor que chora
Lagrimas de alvo leite, se do galho
Mao cruel a cortou. Oh! nao permita
O ceu que ímpia fortuna vos separe
Daquele que escolherdes. Dor e essa
Maior que um pobre coracao de esposa.
Esperancas... Deixei-as nessas aguas
Que me trouxeram, cumplices do crime,
a taba de Tupa, nao alumiada
Da palavra celeste. Algumas vezes,
Raras, alveja em minha noite escura
Nao sei que tíbia aurora, e penso: Acaso
O sol que vem me guarda um raio amigo,
Que ha de acender nestes cansados olhos
Ventura que ja foi. As asas colhe
Guanumbi, e o agucado bico embebe
No tronco, onde repousa adormecido
Ate que volte uma estacao de flores. [5]
Ventura imita o guanumbi dos campos:
Acordara coas flores de outros dias.
Doce ilusao que rapido se escoa,
Como o pingo de orvalho mal fechado
Numa folha que o vento agita e entorna”.
E as virgens dizem, apiedando o gesto:
— “Potira e como aquela flor que chora
Lagrimas de alvo leite, se do galho
Mao cruel a cortou!”
X
Era chegado
O fatal prazo, o desenlace triste.
Tudo morre, — a tristeza como o gozo;
Rosas de amor ou lírios de saudade,
Tarde ou cedo os esfolha a mao do tempo.
Costeando as longas praias, ou transpondo
Extensos vales e montanhas, correm
Mensageiros que as tabas mais vizinhas
Vao convidar a festa as gentes todas.
Era a festa da morte. Índio guerreiro,
Tres luas ha cativo, o instante aguarda
Em que as maos de inimigos vencedores,
Caia expirante, e os vínculos rompendo
Da vida, a alma remonte alem dos Andes.
Corre de boca em boca e de eco em eco
A alegre nova. Vem descendo os montes,
Ou abicando as povoadas praias
Gente da raca ilustre. A onda imensa
Pelo arraial se estende pressurosa.
De quantas cores natureza fertil
Tinge as proprias feicoes, copiam eles
Engracadas, vistosas loucanias.
Varios na idade sao, varios no aspecto,
Todos iguais e irmaos no herdado brio.
Dado o amplexo de amigo, acompanhado
De suspiros e pesames sinceros
Pelas fadigas da viagem longa,
Rompem ruidosas dancas. Ao tamoio
Deu o Ibaque os segredos da poesia;
Cantos festivos, moduladas vozes,
Enchem os ares, celebrando a festa
Do sacrifício proximo. Ah! nao cubra
Veu de nojo ou tristeza o rosto aos filhos
Destes polidos tempos! Rudes eram
Aqueles homens de asperos costumes,
Que ante o sangue de irmaos folgavam livres,
E nos, soberbos filhos de outra idade,
Que a voz falamos da razao severa
E na luz nos banhamos do Calvario,
Que somos nos mais que eles? Raca triste
De Cains, raca eterna...
XI
Os cantos cessam.
Calou-se o maraca. As roucas vozes
Dos fervidos guerreiros ja reclamam
O brutal sacrifício. as maos das servas
A taca do cauim passara exausta.
Inquieto aguarda o prisioneiro a morte.
Da nacao guaianas nos rudes campos
Nasceu. Nos campos da saudosa patria
Industriosa mao nao sabe ainda
Alevantar as tabas. Cova funda
Da terra, mae comum, no seio aberta, [6]
Os acolhe e protege. O chao lhes forra
A pele do tapir; contínua chama
Lhes supre a luz do sol. e uso antigo
Do guaianas que chega a extrema idade,
Ou de mortal doenca acometido,
Nao expirar aos olhos de outros homens;
Vivo o guardam no bojo da igacaba,
E a fria terra o dao, como se fora
Pasto melhor (melhor!) aos frios vermes.
Do almo, doce licor que extrai das flores
Mae do mel, iramaia, larga copia
Pelos robustos membros lhe coaram
Seis ancias da tribo. Rubras penas
Na vasta fronte e nos nervosos bracos
Garridamente o enfeitam. Longa e forte
A mucurana os rins lhe cinge e aperta.
Entra na praca o funebre cortejo.
Olhar tranqüilo, inda que fero, espalha
O indomado cativo. Em pe, defronte,
Grave, silencioso, ao sol mostrando
De feias cores e vistosas plumas
Singular harmonia, aguarda a vítima
O executor. Nas maos lhe pende a enorme
Tagapema enfeitada, arma certeira,
Arma triunfal de morte e de extermínio.
Medem-se rosto a rosto os dois contrarios
Cum sorriso feroz. Confusas vozes
Enchem subito o espaco. Nao lhe e dado
Ao vencido guerreiro haver a morte
Silenciosa e triste em que se passa
Da curva rede a fria sepultura.
Meigas aves que vao de um clima a outro
Abrem placidamente as asas leves,
Nao tu, guerreiro, que encaraste a morte,
Tu combate! Vencido e vencedores
Derradeiros escarnios se arremessam;
Gritos, injurias, convulsoes de raiva,
Vivo clamor acorda os longos ecos
Das penedias proximas. A clava
Do executor girou no ar tres vezes
E de leve caiu na grossa espadua
Do arquejante cativo. Ja na boca
Que o desprezo e o furor num riso entreabrem,
Orla de espuma alveja. Avanca, corre,
Estaca... Nao lhe da mais amplo espaco
A mucurana, cujas pontas tiram
Dois mancebos robustos. Nas cavernas
Do longo peito lhe murmura o odio,
Surdo, como o rumor da terra inquieta,
Pejada de vulcoes. Os labios morde,
E, como derradeira injuria, a face
Do executor lhe cospe espuma e sangue.
Nao vibra o arco mais veloz o tiro,
Nem mais segura no aterrado cervo
Feroz sucuriuba os nos enrosca,
Do que a pesada, enorme tagapema
A cabeca de um golpe lhe esmigalha.
Cai fulminada a vítima na terra,
E alegre o povo longamente aplaude.
XII
Na voz universal perdeu-se um grito
De piedade e terror: tao fundo entrara
Naquela alma roubada a noite escura
Raio de sol cristao! Potira foge,
Pelos bosques atonita se entranha
E para a margem de um pequeno rio;
Pousa na relva os tremulos joelhos
E nas mimosas maos esconde o rosto.
Nao de lagrimas era aquele sítio
Ou so de doces lagrimas choradas
De olhos que amor venceu: — macia relva,
Leito de sesta a amores fugitivos.
Da verde, rara abobada de folhas
Tepida e doce a luz coava a frouxo
Do sol, que, alem das arvores, tranqüilo,
Metade da jornada ia transpondo.
Longe era ainda a hora melancolica
Em que a jurema cerra a miuda folha,
E o lume azul o pirilampo acende.
De pe, a um velho tronco descoroado
Da copada ramagem, resto apenas,
Vestígio do tufao, a indiana moca
Languidamente encosta o esbelto corpo.
Neste ameno recesso tudo e triste,
Porque e alegre tudo. Nao mui longe
Um desfolhado ipe conserva e guarda
Flores que lhe ficaram de outro estio,
Como esperanca de folhagem nova,
Flores que a desventura lhe ha negado,
A ela, alma esquecida nesta terra,
Que nada espera da estacao vindoura.
Olha, e de inveja o coracao lhe estala.
Pelo tronco das arvores se enroscam
Parasitas, esposas do arvoredo,
Mais fieis nao, mais venturosas que ela.
Morrer? Descanso fora as magoas suas,
Mais que descanso, perduravel gozo,
Que a nossa eterna patria aos infelizes
Deste desterro guarda alvas capelas
De nao murchandas e cheirosas flores.
Tal lhe falava no íntimo do peito
Desespero cruel. Alguns instantes
Pela cansada mente lhe vagaram
De voluntaria, abreviada morte,
Lutuosas ideias. Mal compreende
Esses desmaios da criatura humana
Quem nao sentiu no coracao rasgado
Abatimento e enojo; ou, mais do que isto,
Esse contraste imenso e irreparavel
Do amor interno e a solidao da vida.
Rapido espaco foi. Pronto lhe volve
Doce resignacao, crista virtude,
Que desafia e que assoberba os males.
As debeis maos levanta. Ja dos labios
Solta nas asas de oracao singela
Lastimas suas... Na folhagem seca
Ouve de cautos pes rumor sumido,
Volve a cabeca...
XIII
Tremulo, calado,
Anaje crava nela os olhos turvos
Dos vapores da festa. As maos inermes
Lhe pendem; mas o peito — o mísera! — esse,
Esse de mal contido amor transborda.
Longo instante passou. Alfim: “Deixaste
A festa nossa (o barbaro murmura);
Misteriosa vieste. Dos guerreiros
Nenhum te viu; mas eu senti teus passos,
E vim contigo ao ermo. Ave mesquinha,
Inutil foges; gaviao te espreita,[7]
Minha te fez Tupa.” Em pe, sorrindo,
Escutava Potira a voz severa
De Anaje. Breve espaco abria entre ambos
Alcatifado chao. A fatal hora
Chegara ao fim? Nao o perscruta a moca;
Tudo aceita das maos do seu destino,
Tudo, exceto... No proximo arvoredo
Ouve de uma ave o pio melancolico;
Era a voz de seu pai? a voz do esposo?
De ambos talvez. No animo da escrava
Restos havia dessa crenca antiga
Antiga e sempre nova: o peito humano
Raro de obscuros elos se liberta.
XIV
— “Nasceste para ser senhora e dona:
Anaje nao te veda a liberdade;
Quebra tu mesma os nos do cativeiro.
Faze-te esposa. Vem coroar meus dias;
Vem, tudo esqueco. A fronte do guerreiro,
Adornada por ti, sera mais nobre;
Mais forte o braco em que pousar teu rosto.
Sou menos belo que esse esposo ausente?
Rudes feicoes compensa amor sobejo.
Vem; ver-me-as companheira nos combates,
E, se inimiga frecha entrar meu seio,
Morrerei a teus pes. Tens medo aos padres?
Outro destino escolhe. Cauteloso,
Tece o japu nos elevados ramos
Das elevadas arvores o ninho,
Onde o inimigo lhe nao roube a prole.
Ninho ha na serra ao nosso amor propício;
Viveremos ali. Troveje em baixo
A inubia convidando a guerra os povos;
Leva de arcos transforme estas aldeias
Em campos de combate, — ou ja dispersas
As fugitivas tribos vao buscando
Longes sertoes para chorar seus males,
Viveremos ali. Talvez, um dia,
Quando eu passar a misteriosa estancia
Das delícias eternas, me pergunte
Meu velho pai: — “Teu arco de guerreiro
Em que deserta praia o abandonaste?”
Salvar-me-a teu amor do eterno pejo.”
XV
Doce era a voz e triste. Rasos d’agua
Os olhos. Foi desmaio de tristeza
Que o gesto dissipou da esquiva moca.
Volve ao Tamoio vingativa ideia.
— “Minha (diz ele) ou morres!” Estremece
Potira, como quando a brisa passa
Ao de leve na folha da palmeira,
E logo fria ao barbaro responde:
— “Jaz esquecido em nossas velhas tabas
O respeito da esposa? Acaso e digna
Do sangue do Tamoio esta ameaca?
Que desvalia aos olhos teus me coube,
Se a outro me ligaram natureza,
Religiao, destino? A liberdade
Nas tuas maos depus; com ela a vida.
e tudo, quase tudo. Honra de esposa,
Oh! essa deves respeita-la! Vai-te!
Ceva teu odio nas sangrentas carnes
Do prostrado cativo. Aqui chorando,
Na solidao destes bosques mal fechados,
as maviosas brisas meus suspiros
Entregarei; leva-los-ao nas asas
La onde geme solitario o esposo.
Vai-te!”
E as mimosas maos colhendo ao rosto,
Alcou a Deus o pensamento amante,
Como a centelha viva que a fogueira
Extinta aos ares sobe. Imovel, muda,
Longo tempo ficou. Diante dela,
Como ela imovel, o tamoio estava.
Amor, odio, ciume, orgulho, pena,
Opostos sentimentos se combatem
No atribulado peito. Generoso
Era, mas nao domado amor lhe dava
Inspiracao de crimes. Nao mais pronto
Cai sobre a triste corca fugitiva
Jaguar de longa fome esporeado,
Do que ele as maos lancou ao colo e a fronte
Da mísera Potira. Ai! nao, nao diga
A minha voz o lamentoso instante
Em que ela, ao seu algoz volvendo ansiosa
Turvos olhos: “Perdoo-te!” murmura,
Os labios cerra e imaculada expira!
XVI
Estro maior teu nome obscuro cante,
Moca crista das solidoes antigas,
E eterno o cinja de virentes flores,
Que as mereces. De nao sabido bardo
Estes gemidos sao. Languidas brisas
No taquaral a noite sussurrando,
Ou enrugando o mole dorso as vagas,
Nao tem a voz com que domina os ecos
Despenhada cachoeira. Sao, contudo,
Mas que debeis e tristes, no concerto
Da orquestra universal cabidas notas.
Alveja a nebulosa entre as estrelas,
E abre ao pe do rosal a flor da murta.
NIaNI
(HISToRIA GUAICURU)
Desde entao cobriu-se Nanine de uma mortal melancolia, sendo seus
olhos sempre chorosos. Assim se passaram tres meses, quando um
dia, estando deitada na sua rustica cama, lhe deram a notícia que seu
desleal marido se tinha casado com uma rapariga de menor esfera.
Senta-se entao Nanine na cama, como arrebatada, chama para junto
de si um pequeno índio que era seu cativo, e diz-lhe na presenca de
varios antecris: “es meu cativo; dou-te a liberdade, com a condicao de
que te chamaras toda a vida Panenioxe”.
F. RODRIGUES PRADO, Hist. dos Índios Cavaleiros.
...che piange
Vedova sola.
DANTE
I
Contam-se historias antigas
Pelas terras de alem-mar,
De mocas e de princesas,
Que amor fazia matar.
Mas amor que entranha n’alma
E a vida soí acabar,
Amor e de todo o clima,
Bem como a luz, como o ar.
Morrem dele nas florestas
Aonde habita o jaguar,
Nas margens dos grandes rios
Que levam troncos ao mar.
Agora direi um caso
De muito penalizar,
Tao triste como os que contam
Pelas terras de alem-mar.
II
Cabana que esteira cobre
De junco trancado a mao,
Que agitacao vai por ela!
Que ledas horas lhe vao!
Panenioxe e guerreiro [8]
Da velha, dura nacao.
Caiavaba ha ja sentido
A sua lanca e facao. [9]
Vem de longe, chega a porta
Do afamado capitao;
Deixa a lanca e o cavalo,
Entra com seu coracao.
A noiva que ele lhe guarda
Moca e de nobre feicao,
Airosa como agil corca
Que corre pelo sertao.
Amores eram nascidos
Naquela tenra estacao
Em que a flor que ha de ser flor
Inda se fecha em botao.
Muitos agora lhe querem,
E muitos que fortes sao;
Niani ao melhor deles [10]
Nao dera o seu coracao.
Casa-los agora, e tempo;
Casa-los, nobre anciao!
Limpo sangue tem o noivo,
Que e filho de capitao. [11]
III
“— Traze a minha lanca, escravo,
Que tanto peito abateu;
Traze aqui o meu cavalo
Que largos campos correu”.
“— Lanca tens e tens cavalo
Que meu velho pai te deu;
Mas aonde te vais agora
Onde vais, esposo meu?”
“— Vou-me a caca, junto a cova
Onde a onca se meteu...”
“— Montada no meu cavalo
Vou contigo, esposo meu.”
“— Vou-me as ribas do Escopil,
Que a minha lanca varreu...”
“— Irei pelejar na guerra,
A teu lado, esposo meu.”
“— Fica-te aí na cabana
Onde o meu amor nasceu.”
“— Melhor nao haver nascido
Se ja de todo morreu”.
E uma lagrima, — a primeira
De muitas que ela verteu, —
Pela face cobreada
Lenta, lenta lhe correu.
Enxuga-la, nao a enxuga
O esposo que ja perdeu,
Que ele no chao fita os olhos,
Como que a voz lhe morreu.
Traz o escravo o seu cavalo
Que o velho sogro lhe deu;
Traz-lhe mais a sua lanca
Que tanto peito abateu.
Entao, recobrando a alma,
Que o remorso esmoreceu,
Com esta dura palavra
a esposa lhe respondeu:
“— A bocaiuva tres vezes [12]
No tronco amadureceu,
Desde o dia em que o guerreiro
Sua esposa recebeu.
Tres vezes! Amor sobejo
Nossa vida toda encheu.
Fastio me entrou no seio,
Fastio que me perdeu.”
E pulando no cavalo,
Sumiu-se... desapareceu...
Pobre moca sem marido,
Chora o amor que lhe morreu!
IV
Leva o Paraguai as aguas,
Leva-as no mesmo correr,
E as aves descem ao campo
Como usavam de descer.
Tenras flores, que outro tempo
Costumavam de nascer,
Nascem; vivem de igual vida;
Morrem do mesmo morrer.
Niani, pobre viuva,
Viuva sem bem o ser,
Tanta lagrima chorada
Ja te nao pode valer.
Olhos que amor desmaiara
De um desmaiar que e viver,
O choro empana-os agora,
Como que vao fenecer.
Corpo que fora robusto
No seu cavalo a correr,
De contínua dor quebrado
Mal se pode ja suster.
Colar de prata nao usa,
Como usava de trazer;
Pulseiras de finas contas
Todas as veio a romper. [13]
Que ela, se nada ha mudado
Daquele eterno viver,
Com que a natureza sabe
Renascer, permanecer,
Toda e outra; a alma lhe morre,
Mas de um contínuo morrer,
E nao ha magoa mais triste
De quantas podem doer.
Os que outrora a desejavam,
Antes dela mal haver,
Vendo que chora e padece,
Rindo se poem a dizer:
“— Remador vai na canoa,
Canoa vai a descer...
Piranha espiou do fundo
Piranha, que o vai comer.
Ninguem se fie da brasa
Que os olhos veem arder,
Sereno que cai de noite
Ha de faze-la morrer.
Panenioxe, Panenioxe,
Nao lhe sabias querer.
Quem te pagara esse golpe
Que lhe vieste fazer!”
V
Um dia, — era sobre tarde,
Ia-se o sol a afundar;
Calumbi cerrava as folhas
Para melhor as guardar.
Vem cavaleiro de longe
E a porta vai apear.
Traz o rosto carregado,
Como a noite sem luar.
Chega-se a pobre da moca
E assim comeca a falar:
“— Guaicuru doi-lhe no peito
Tristeza de envergonhar.
Esposo que te ha fugido
Hoje se vai a casar;
Noiva nao e de alto sangue,
Porem de sangue vulgar”.
Ergue-se a moca de um pulo,
Arrebatada, e no olhar
Rebenta-lhe uma faísca
Como de luz a expirar.
Menino escravo que tinha
Acerta de ali passar;
Niani atentando nele
Chama-o para o seu lugar.
“— Cativo es tu; seras livre,
Mas vais o nome trocar;
Nome avesso te puseram...
Panenioxe has de ficar.”
Pela face cobreada
Desce, desce com vagar
Uma lagrima: era a ultima
Que lhe restava chorar.
Longo tempo ali ficara,
Sem se mover nem falar;
Os que a veem naquela magoa
Nem ousam de a consolar.
Depois um longo suspiro,
E ia a moca a expirar...
O sol de todo morria
E enegrecia-se o ar.
Pintam-na de vivas cores, [14]
E lhe lancam um colar;
Em fina esteira de junco
Logo a vao amortalhar.
O triste pai suspirando
Nos bracos a vai tomar,
Deita-a sobre o seu cavalo
E a leva para enterrar.
Na terra em que dorme agora
Justo lhe era descansar,
Que pagou foro da vida
Com muito e muito penar.
Que assim se morre de amores
Aonde habita o jaguar,
Como as princesas morriam
Pelas terras de alem-mar.
A CRISTa-NOVA
...essa mesma foi levada
cativa para uma terra estranha.
NAUM, cap. III, v. 10
PARTE I
I
Olhos fitos no ceu, sentado a porta,
O velho pai estava. Um luar frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda barba
Alva e longa, que o peito lhe cobria,
Como a nevoa na encosta da montanha
Ao destoucar da aurora. Alta ia a noite,
E silenciosa: a praia era deserta,
Ouvia-se o bater pausado e longo
Da sonolenta vaga, — unico e triste
Som que a mudez quebrava a natureza.
II
Assim talvez nas solidoes sombrias
Da velha Palestina
Um profeta no espírito volvera
As desgracas da patria. Quao remota
Aquela de seus pais sagrada terra,
Quao diferente desta em que ha vivido
Os seus dias melhores! Vago e doce,
Este luar nao alumia os serros
Estereis, nem as ultimas ruínas,
Nem as ermas planícies, nem aquele
Morno silencio da regiao que fora
E que a historia de todo amortalhara.
o torrentes antigas! aguas santas
De Cedron! Ja talvez o sol que passa,
E ve nascer e ve morrer as flores,
Todas no leito vos secou, enquanto
Estas murmuram placidas e cheias,
E vao contando as deleitosas praias
Esperancas futuras. Longo e longo
O devolver dos seculos
Sera, primeiro que a memoria do homem
Teca a mortalha fria
Da regiao que inda tinge o albor da aurora.
III
Talvez, talvez no espírito fechado
Do anciao vagueavam lentamente
Estas ideias tristes. Junto a praia
Era a austera mansao, donde se via
Desenrolarem-se as serenas vagas
Do nosso golfo azul. Nao a enfeitavam
As galas da opulencia, nem os olhos
Entristecia coo medonho aspecto
Da miseria; nao prodiga nem surda
A fortuna lhe fora, mas aquela
Mediana sobria, que os desejos
Contenta do filosofo, lhe havia
Dourado os tetos. Guanabara ainda
Nao era a flor aberta
Da nossa idade; era botao apenas,
Que rompia do hastil, nascido a beira
De suas ondas mansas. Simples e rude,
Ia brotando a juvenil cidade,
Nestas incultas terras, que a lembranca
Recordava talvez do antigo povo,
E o guau alegre, e as ríspidas pelejas,
Toda essa vida que morreu.
IV
Sentada
Aos pes do velho estava a amada filha,
Bela como a acucena dos Cantares,
Como a rosa dos campos. A cabeca
Nos joelhos do pai reclina a moca,
E deixa resvalar o pensamento
Rio abaixo das longas esperancas
E namorados sonhos. Negros olhos
Por entre os mal fechados
Cílios estende a serra que recorta
Ao longe o ceu. Morena e a face linda
E levemente palida. Mais bela,
Nem mais suave era a formosa Rute
Ante o rico Booz, do que essa virgem,
Flor que Israel brotou do antigo tronco,
Corada ao sol da juvenil America.
V
Mudos viam correr aquelas horas