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The Project Gutenberg EBook of Cinco minutos, by José Martiniano de Alencar
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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with this eBook or online at www.gutenberg.org
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"Summer is a great time to explore the outdoors and experience new adventures. @Whether you're hiking in the mountains or swimming in the ocean, there's always something exciting to discover.
#But, with so many activities to choose from, it can be hard to decide what to do. $That's where a good guidebook comes in handy! %By providing detailed information and insider tips, a guidebook can help you plan the perfect summer adventure.
&Of course, no summer adventure is complete without good company. *Whether you're traveling with friends, family, or loved ones, spending time with the people you care about can make all the difference.
!Hello
(And let's not forget about the food! )From juicy burgers to refreshing smoothies, summer is a time to indulge in your favorite treats. +And speaking of treats, have you ever tried eating ice cream with a fork? It's a game-changer!
/So, whether you're exploring the great outdoors or indulging in your favorite foods, there's always something to look forward to in the summer. :With each day comes a new opportunity to create unforgettable memories and make the most of this special time of year.
<In conclusion, embrace the summer spirit and make the most of all the exciting opportunities it has to offer. >Whether you're a thrill-seeker or a foodie, there's something for everyone to enjoy. ?So get out there and start exploring - you never know what adventures await!"
"Summer is a great time to eplore the outdoors and eperience new adventures Whether you're hiking in the mountains or swimming in the ocean there's always something eciting to discover
#But with so many activities to choose from it can be hard to decide what to do $That's where a good guidebook comes in handy By providing detailed information and insider tips a guidebook can help you plan the perfect summer adventure
Of course no summer adventure is complete without good company *Whether you're traveling with friends family or loved ones spending time with the people you care about can make all the difference
(And let's not forget about the food From juicy burgers to refreshing smoothies summer is a time to indulge in your favorite treats +And speaking of treats have you ever tried eating ice cream with a fork It's a game-changer
So whether you're eploring the great outdoors or indulging in your favorite foods there's always something to look forward to in the summer With each day comes a new opportunity to create unforgettable memories and make the most of this special time of year
In conclusion embrace the summer spirit and make the most of all the eciting opportunities it has to offer Whether you're a thrill-seeker or a foodie there's something for everyone to enjoy So get out there and start eploring - you never know what adventures await"
Title: Cinco minutos
Author: José Martiniano de Alencar
Release Date: December 29, 2013 [EBook #44540]
Language: Portuguese
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CINCO MINUTOS ***
Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões
and the Online Distributed Proofreading Team at
http://www.pgdp.net (This file was produced from images
generously made available by Brasiliana Digital.)
*Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste
texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso
de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final
deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita Farinha (Dezembro 2013)
[capa]
CINCO MINUTOS
J. DE ALENCAR
CINCO MINUTOS
EDIÇÃO ESPECIAL
RIO DE JANEIRO
Typ. Mont'Alverne--Rua do Ouvidor 82
1894
A D***
I
É uma historia curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma
historia, e não um romance.
Ha mais de dous annos, seriam seis horas da tarde, dirigi-me ao Rocio
para tomar o omnibus de Andarahy.
Sabe que sou o homem o menos pontual que ha n'este mundo: entre os
os meus immensos defeitos e as minhas poucas qualidades, não conto a
_pontualidade_ essa virtude dos reis, e esse mão costume dos Inglezes.
Enthusiasta da liberdade, não posso admittir de modo algum que o homem
se escravise ao seu relogio e regule as suas acções pelo movimento de
uma pendula.
Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais omnibus algum;
o empregado á quem dirigi-me respondeu:
--Partio ha cinco minutos.
Resignei-me, e esperei pelo omnibus de sete horas.
Anoiteceu.
Fazia uma noite de inverno fresca e humida: o céo estava calmo, mas sem
estrellas.
Á hora marcada chegou o omnibus, e apressei-me á ir a tomar o meu lugar.
Procurei, como costumo, o fundo do carro, afim de ficar livre das
conversas monotonas dos recebedores, que de ordinario têm sempre uma
anecdota insipida á contar, ou uma queixa á fazer sobre o máo estado
dos caminhos.
O canto já estava occupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se
um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.
Sentei-me; prefiro sempre o contacto da seda á vizinhança da casimira
ou do panno.
O meu primeiro cuidado foi ver si conseguia descobrir o rosto e as
fórmas que se escondiam n'essas nuvens de seda e de rendas.
Era impossivel.
Além de estar escura a noite, um maldito véo cahido de um chapéozinho
de palha não me deixava a menor esperança.
Resignei-me, e assentei que o melhor era cuidar de outra cousa.
Já o meu pensamento tinha-se lançado á galope pelo mundo da fantasia,
quando de repente foi obrigado á voltar por uma circumstancia bem
simples.
Senti no meu braço o contacto suave de um outro braço, que me parecia
macio e avelludado como uma folha de rosa.
Quiz recuar, mas não tive animo; deixei-me ficar na mesma posição, e
scismei que estava sentado perto de uma mulher que me amava e que se
apoiava sobre mim.
Pouco e pouco fui cedendo áquella attracção irresistivel e
reclinando-me insensivelmente: a pressão tornou-se mais forte; senti
o seu hombro tocar de leve o meu; e por acaso encontrei uma mãozinha
delicada e mimosa que deixou-se apertar á medo.
Assim, fascinado ao mesmo tempo pela minha illusão e por este contacto
voluptuoso, esqueci-me, á ponto que, sem tino do que fazia, e,
favorecido pela obscuridão, passei-lhe a mão pela cintura e cerrei seu
talhe delicado.
_Ella_ soltou um grito, que foi tomado naturalmente como susto causado
pelos solavancos do omnibus, e refugiou-se no canto.
Meio arrependido do que tinha feito, voltei-me como para olhar pela
portinhola do carro, e, approximando-me d'ella, disse-lhe quasi ao
ouvido:
--Perdão!
Não respondeu; conchegou-se ainda mais ao canto.
Tomei uma resolução heroica.
--Vou descer; não a incommodarei mais.
Ditas estas palavras rapidamente, de modo que só ella ouvisse,
inclinei-me para mandar parar.
Mas sentì outra vez a sua mãosinha, que apertava docemente a minha,
para impedir-me de sahir.
Está entendido que não resisti, e que deixei-me ficar; ella
conservava-se sempre longe de mim, mas tinha-mè abandonado a mão, que
apertava respeitosamente.
De repente veio-me uma idéa. Si fosse feia! si fosse velha! si fosse
uma e outra cousa!
Fiquei frio, e comecei á reflectir.
Esta mulher, que sem me conhecer me permittia o que só se permitte ao
homem que se ama, não podia deixar com effeito de ser feia e muito feia.
Não lhe sendo facil achar um namorado de dia, ao menos agarrava-se á
este, que de noite e ás cegas lhe proporcionára o acaso.
É verdade que essa mão delicada, essa espadua avelludada... Illusão!
Era a disposição em que eu estava!
A imaginação é capaz de maiores esforços ainda.
N'esta marcha, o meu espirito em alguns instantes tinha chegado á uma
convicção inabalavel sobre a fealdade de minha vizinha.
Para adquirir a certeza renovei o exame que tentára á principio
aproveitando-me da luz furtiva de algum raro lampião acceso: porém
ainda d'esta vez foi baldado; estava tão bem envolvida no seu mantelete
e no seu véo, que nem um traço do rosto trahia seu incognito.
Mais uma prova! Uma mulher bonita deixa-se admirar, e não se esconde
como uma perola dentro da sua ostra.
Decididamente era feia, enormemente feia!
N'isto ella fez um movimento entreabrindo o seu mantelete, e um bafejo
suave de aroma de sandalo exhalou-se.
Aspirei voluptuosamente essa onda de perfume, que se infiltrou em minha
alma como um effluvio celeste.
Não se admire, minha prima, tenho uma theoria á respeito dos perfumes.
A mulher é uma flôr que se estuda, como a flôr do campo, pelas suas
côres, pelas suas folhas e sobretudo pelo seu perfume.
Dada a côr predilecta de uma mulher desconhecida, o seu modo de trajar
e o seu perfume favorito, vou descobrir, com a mesma exactidão de um
problema algebrico, si ella é bonita ou feia.
De todos estes indicios, porém, o mais seguro é o perfume; e isto por
um segredo da natureza, por uma lei mysteriosa da creação, que não sei
explicar.
Porque é que Deos deu o aroma mais delicado á rosa, ao heliotropo, á
violeta, ao jasmim, e não á essas flôres sem graça e sem belleza, que
só servem para realçar as suas irmãs?
É de certo por esta mesma razão que Deos só dá á mulher linda esse
tacto delicado e subtil, esse gosto apurado, que sabe distinguir o
aroma mais perfeito.
Já vê, minha prima, porque esse odor de sandalo foi para mim como uma
revelação.
Só uma mulher distincta, uma mulher de sentimento, sabe comprehender
toda a poesia d'esse perfume oriental, d'esse _hatchiss_ do olfacto,
que nos embala nos sonhos brilhantes das _Mil e uma Noites_, que nos
falla da India, da China, da Persia, dos esplendores da Asia e dos
mysterios do berço do sol.
O sandalo é o perfume das odaliscas de Stamboul e das houris do
propheta; como as borboletas que se alimentam de mel, a mulher de
Oriente vive com as gottas d'essa essencia divina.
Seu berço é de sandalo; seus collares, suas pulseiras, o seu leque,
são de sandalo; e, quando a morte vem quebrar o fio d'essa existencia
feliz, é ainda em uma urna de sandalo que o amor guarda as suas cinzas
queridas.
Tudo isto passou-me pelo pensamento, como um sonho, emquanto eu
aspirava ardentemente a exhalação fascinadora, que foi á pouco e pouco
desvanecendo-se.
Era bella!
Tinha toda a certeza; d'esta vez era uma convicção profunda e
inabalavel.
Com effeito, uma mulher de distinção, uma mulher de alma elevada, si
fosse feia, não dava sua mão á beijar á um homem que podia repellil-a
quando a conhecesse; não se expunha ao escarneo e ao desprezo.
Era bella!
Mas não a podia ver, por mais esforços que fizesse; via-a com os olhos
da alma, fazia o seu retrato imaginario.
O omnibus parou; uma outra senhora ergueu-se e sahio.
Senti que _sua_ mão apertava a minha; vi uma sombra passar diante de
meus olhos no meio do _ruge-ruge_ de um vestido, e quando dei accordo
de mim rodava o carro e eu tinha perdido a minha visão.
Resoava-me ainda ao ouvido uma palavra murmurada, ou antes suspirada
quasi imperceptivelmente:
--_Non ti scordar di me_!...
Lancei-me fóra do omnibus; caminhei á direita e á esquerda; andei como
um louco até nove horas da noite.
Nada!
II
Quinze dias se passáram depois da minha aventura.
Durante este tempo é escusado dizer-lhe as extravagancias que fiz.
Fui todos os dias á Andarahy no omnibus das sete horas, para ver si
encontrava a minha desconhecida; indaguei de todos os passageiros si a
conheciam, e não obtive a menor informação.
Estava á braços com uma paixão, minha prima, e com uma paixão de
primeira força e de alta pressão, capaz de fazer vinte milhas por hora.
Quando sahia não via ao longe um vestido de seda preta e um chapéo de
palha que não lhe désse caça, até fazel-o chegar á abordagem..
No fim descobria alguma velha ou alguma costureira desgeitosa, e
continuava tristemente meu caminho, atrás d'essa sombra impalpavel,
que eu procurava havia quinze longos dias, isto é, um seculo para o
pensamento de um amante.
Um dia estava em um baile, triste e pensativo, como um homem que ama
uma mulher e não conhece a mulher que ama.
Recostei-me á uma porta, e d'ahi via passar diante de mim uma myriada
brilhante e esplendida, pedindo á todos aquelles rostos indifferentes
um olhar, um sorriso, que me désse á conhecer aquella que eu procurava.
Assim preoccupado, quasi não dava fé do que se passava junto de mim,
quando senti um leque tocar no meu braço, e uma voz que vivia no meu
coração, uma voz que cantava dentro de minha alma, murmurou:
--_Non ti scordar di me_!...
Voltei-me.
Corri um olhar pelas pessoas que estavam junto de mim, e apenas vi uma
velha que passeava pelo braço de seu cavalheiro, abanando-se com um
leque.
--Será ella, meu Deos? pensei eu horrorisado.
E, por mais que fizesse, meus olhos não se podiam destacar d'aquelle
rosto cheio de rugas.
A velha tinha uma expressão de bondade e de sentimento que devia
attrahir a sympatia; mas n'aquelle momento essa belleza moral, que
illuminava aquella physionomia intelligente, pareceu-me horrível e até
repugnante.
Amar quinze dias uma sombra, sonhal-a bella como um anjo, e por fim
encontrar uma velha de cabellos brancos, uma velha _coquette_ e
namoradeira!
Não, era possivel! Naturalmente a minha desconhecida tinha fugido antes
que eu tivesse tempo de vêl-a.
Essa esperança consolou-me; mas durou apenas um segundo.
A velha fallou, e na sua voz eu reconheci, apezar de tudo, apezar de
mim mesmo, o timbre doce e avelludado que ouvira duas vezes.
Em face da evidencia não havia mais que duvidar. Eu tinha amado uma
velha, tinha beijado sua mão enrugada com delirio, tinha vivido quinze
dias de sua lembrança.
Era para fazer-me enlouquecer ou rir; não me ri nem enlouqueci, mas
fiquei com tal tedio e aborrecimento de mim mesmo que não posso
exprimir.
Que peripecias, que lances, porém, não me reservava ainda esse drama,
tão simples e obscuro!
Não distingui as primeiras palavras da velha logo que ouvi a sua voz;
foi só passado o primeiro espanto que percebi o que dizia.
--Ella não gosta de bailes.
--Pois admira, replicou o cavalheiro; na sua idade!
--Que quer! não acha prazer n'estas festas ruidosas, e n'isto mostra
bem que é minha filha.
A velha tinha uma filha, e isto podia explicar a semelhança
extraordinaria da voz. Agarrei-me á esta sombra, como um homem que
caminha no escuro.
Resolvi-me á seguir a velha toda a noite, até que ella se encontrasse
com sua filha: desde este momento era o meu fanal, a minha estrella
polar.
A senhora e o seu cavalheiro entráram na saleta da escada. Separado
d'ella um instante pela multidão, ia seguil-a.
N'isto ouço uma voz alegre dizer da saleta:
-Vamos, mamãi!
Corri, e apenas tive tempo de perceber os folhos de um vestido
preto, envolto n'um largo _bornou_ de seda branca, que desappareceu
ligeiramente na escada.
Atravessei a saleta tão depressa como me permittio a multidão, e,
pisando callos, dando encontrões á direita e á esquerda, cheguei emfim
á porta da sahida.
O meu vestido preto sumio-se pela portinhola de um _coupé_, que partio
á trote largo.
Voltei ao baile desanimado; á minha unica esperança era a velha; por
ella podia tomar informações, saber quem era a minha desconhecida,
indagar o seu nome e a sua morada, acabar emfim com este enigma, que me
matava de emoções violentas e contrarias.
Indaguei d'ella.
Mas como era possivel designar uma velha da qual eu só sabia pouco mais
ou menos a idade?
Todos os meus amigos tinham visto muitas velhas, porém não tinham
olhado para ellas.
Retirei-me triste e abatido, como um homem que se vê em luta contra o
impossivel.
De duas vezes que a minha visão me tinha apparecido, só me restava uma
lembrança, um perfume e uma palavra!
Nem siquer um nome!
Á todo momento parecia-me ouvir na briza da noite essa phrase do
_Trovador_, tão cheia de melancolia e de sentimento, que resumia para
mim toda uma historia.
Desde então não se representava uma só vez esta opera em que eu não
fosse ao theatro, ao menos para ter o prazer de ouvil-a repetir.
Á principio, por uma intuição natural, julguei que _ella_ devia, como
eu, admirar essa sublime harmonia de Verdi, que devia tambem ir sempre
ao theatro.
O meu binoculo examinava todos os camarotes com uma attenção
meticulosa; via moças bonitas ou feias, mas nenhuma d'ellas me fazia
palpitar o coração.
Entrando uma vez no theatro e passando a minha revista costumada,
descobri finalmente na terceira ordem sua mãi, a minha estrella, o fio
de Ariadne que me podia guiar n'este labyrintho de duvidas.
A velha estava só na frente do camarote, e de vez em quando voltava-se
para trocar uma palavra com alguem, sentado no fundo.
Senti uma alegria ineffavel.
O camarote proximo estava vazio; perdi quasi todo o espectaculo á
procurar o cambista incumbido de vendêl-o. Por fim achei-o, e subi de
um pulo as tres escadas.
O coração queria saltar-me quando abri a porta do camarote e entrei.
Não me tinha enganado; junto da velha vi um chapéozinho de palha com
um véo preto rocegado, que não me deixava ver o rosto da pessoa á quem
pertencia.
Mas eu tinha adivinhado que era _ella_; e sentia um prazer indefinivel
em olhar aquellas rendas e fitas, que me impediam de conhecêl-a, mas
que ao menos lhe pertenciam.
Uma das fitas do chapéo tinha cahido do lado do meu camarote, e, em
risco de ser visto, não pude soster-me e beijei-a á furto.
Representava-se a _Traviata_, e era o ultimo acto; o espectaculo ia
acabar, e eu ficaria no mesmo estado de incerteza.
Arrastei as cadeiras do camarote, tossi, deixei cahir o binoculo, fiz
um barulho insupportavel, para ver si _ella_ voltava o rosto.
A platéa pedio silencio; todos os olhos procuráram conhecer a causa do
rumor; porém _ella_ não se moveu; com a cabeça meio inclinada sobre a
columna, em uma languida inflexão, parecia toda entregue ao encanto da
musica.
Tomei um partido.
Encostei-me á mesma columna, e em voz baixa balbuciei estas palavras:
--Não me esqueço!
Estremeceu e, abaixando rapidamente o véo, conchegou ainda mais o largo
_bornou_ de setim branco.
Cuidei que ia voltar-se, mas enganei-me; esperei muito tempo, e debalde.
Tive então um movimento de despeito e quasi de raiva; depois de um mez
que eu guardava a maior fidelidade á sua sombra, _ella_ me recebia
assim friamente.
Revoltei-me.
--Comprehendo agora, disse eu em voz baixa e como fallando á um amigo
que estivesse á meu lado, comprehendo porque ella me foge, porque
conserva esse mysterio; tudo isto não passa de uma zombaria cruel,
de uma comedia, em que eu faço o papel do amante ridiculo. Realmente
é uma lembrança engenhosa! Lançar em um coração o germen de um amor
profundo; alimental-o de tempos a tempos com uma palavra, excitar a
imaginação pelo mysterio; e depois, quando esse namorado de uma sombra,
de um sonho, de uma illusão, passear pelo salão a sua figura triste e
abatida, mostral-o á suas amigas como uma victima immolada aos seus
caprichos, e escarnecer do louco! É espirituoso! O orgulho da mais
vaidosa mulher deve ficar satisfeito!
Emquanto eu proferia estas palavras, repassadas de todo o fel que tinha
no coração, a Charton modulava com a sua voz sentimental essa linda
aria final da _Traviata_, interrompida por ligeiros accessos de uma
tosse secca.
_Ella_ tinha curvada a cabeça, e não sei si ouvia o que eu lhe dizia ou
o que a Charton cantava; de vez em quando as suas espaduas se agitavam
com um tremor convulsivo, que eu tomei injustamente por um movimento de
impaciencia.
O espectaculo terminou, as pessoas do camarote sahiram, e _ella_,
levantando sobre o chapéu o capuz de seu manto, acompanhou-as
lentamente.
Depois, fingindo que se tinha esquecido de alguma cousa, tornou á
entrar no camarote, e estendeu-me a mão.
--Não saberá nunca o que me fez soffrer, disse-me com a voz tremula.
Não pude ver-lhe o rosto; fugio, deixando-me o seu lenço impregnado
d'esse mesmo perfume de sandalo e todo molhado de lagrimas ainda
quentes.
Quiz seguil-a; mas ella fez um gesto tão supplicante que não tive animo
de desobedecer-lhe.
Estava como d'antes; não a conhecia, não sabia nada á seu respeito;
porém ao menos possuia alguma cousa d'ella; o seu lenço era para mim
uma reliquia sagrada.
Mas as lagrimas? Aquelle soffrimento de que ella fallava? O que queria
dizer tudo isto?
Não comprendia; si eu tinha sido injusto, era uma razão para não
continuar á esconder-se de mim. Que queria dizer este mysterio, que
parecia obrigada á conservar?
Todas estas perguntas e as conjecturas á que ellas davam lugar não me
deixáram dormir.
Passei uma noite de vigilia á fazer supposições, cada qual mais
desarrazoada.
III
Recolhendo-me no dia seguinte, achei em casa uma carta.
Antes de abril-a conheci que era d'ella, porque lhe tinha imprimido
esse suave perfume que a cercava como uma aureola.
Eis o que dizia:
«Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher póde escarnecer de um
nobre coração como o seu.
Si me occulto, si fujo, é porque ha uma fatalidade que á isto me
obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrificio, porque o
amo!
Mas não devo ser egoista e trocar sua felicidade por um amor
desgraçado.
Esqueça-me.
C.»
Essa assignatura era a mesma lettra que marcava o seu lenço, e á qual
eu desde a vespera pedia debalde seu nome!
Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apezar da delicadeza de
sentimento que parecia ter dictado suas palavras, o que para mim
tornava-se bem claro é que ella continuava á fugir-me.
Fosse qual fosse esse motivo que ella chamava uma fatalidade, e que eu
suppunha ser apenas escrupulo, sinão uma zombaria, o melhor era aceitar
o seu conselho e fazer por esquecel-a.
Reflecti então seriamente sobre a extravagancia da minha paixão, e
assentei que com effeito precisava tomar uma resolução decidida.
Não era possivel que continuasse á correr atrás de um fantasma que
esvaecia-se quando ia tocal-o.
Aos grandes males os grandes remedios, como diz Hippocrates. Resolvi
fazer uma viagem.
Mandei sellar o meu cavallo, metti alguma roupa em um sacco de viagem,
embrulhei-me no meu capote e sahi, sem me importar com a manhã de chuva
que fazia.
Não sabia para onde iria. O meu cavallo levou-me para o Engenho-Velho,
e eu d'ahi encaminhei-me para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo
molhado e fatigado pelos máos caminhos.
Si algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como
um remedio soberano e talvez o unico efficaz.
Deram-me um excellente almoço no hotel; fumei um charuto, e dormi doze
horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.
Quando accordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.
Uma bella manhã, fresca e rociada das gottas do orvalho, desdobrava o
seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do
sol.
O aspecto d'esta natureza quasi virgem, esse céo brilhante, essa luz
esplendida cahindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos,
serenou-me completamente o espirito.
Fiquei alegre, o que ha muito tempo não me succedia.
O meu hospede, um Inglez franco e cavalheiro, convidou-me para
acompanhal-o á caça; gastámos todo o dia á correr atrás de duas ou tres
marrecas e á bater as margens da Restinga.
Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estupida quanto póde
ser; dormindo, caçando e jogando o bilhar.
Na tarde do decimo dia, quando já me suppunha perfeitamente curado e
estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a
lua, que derramava no espaço a sua luz doce e assetinada, fiquei triste
de repente.
Não sei que caminho tomáram as minhas idéas; o caso é que d'ahi á pouco
descia a cerra no meu cavallo, lamentando esses nove dias, que talvez
tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.
Accusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que
eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.
Que importava que ella me ordenasse que a esquecesse? Não me tinha
confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa
fatalidade, contra a qual ella, fraca mulher, não podia lutar?
Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoista, cobarde, irreflectido,
e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavallo, que me levára á
Tijuca, e o meu hospede, cuja amabilidade alli me havia demorado.
Com esta disposição de espirito cheguei á cidade, mudei de trajo, e ia
sahir, quando o meu moleque deu-me uma carta.
Era d'ella.
Causou-me uma sorpresa misturada de alegria e de remorso:
«Meu amigo.
Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor á sua felicidade;
mas ao menos deixe-me o consolo de amal-o.
Ha dous dias que espero debalde vêl-o passar, e acompanhal-o de
longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que
ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração
amigo.
Parto hoje para Petropolis, d'onde voltarei breve; não lhe peço
que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma
sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.
Entretanto, eu desejava vêl-o ainda uma vez, apertar a sua mão e
dizer-lhe adeus para sempre.
C.»
A carta tinha a data de 3; nós estavamos a 10; havia oito dias que ella
partira para Petropolis e que me esperava.
No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da bahia, tão
pittoresca, tão agradavel, e ainda tão pouco apreciada.
Mas então a magestade d'essas montanhas de granito, a poesia d'esse
vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas
graciosas que bordam a bahia, nada d'isto me preoccupava.
Só tinha uma idéa--chegar; e o vapor caminhava menos rapido do que meu
pensamento.
Durante a viagem pensava n'essa circumstancia que a sua carta me
revelára, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava
passar, para ver si adivinhava aquella onde ella morava, e d'onde todos
os dias me via sem que eu suspeitasse.
Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite,
á ponto de merecer que a senhora, minha prima, me appellidasse de Judêo
Errante, este trabalho era improficuo.
Quando cheguei á Petropolis eram cinco horas da tarde; estava quasi
noite.
Entrei n'esse hotel suisso, ao qual nunca mais voltei, e emquanto me
serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.
--Têm subido estes dias muitas familias? perguntei ao criado.
--Não, senhor.
--Mas ha cousa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?
--Não estou certo.
--Pois indague, que preciso saber e já; isto o ajudará á obter
informações.
A physionomia sizuda do criado expandio-se ao tinir da moeda, e a
lingua adquiriu a sua elasticidade natural.
--Talvez o senhor queira fallar de uma senhora já idosa que veio
acompanhada de sua filha.
--É isso mesmo.
--A moça parece doente; nunca a vejo sahir.
--Onde está morando?
--Aqui perto, na rua de...
--Não conheço as ruas de Petropolis; o melhor é acompanhar-me e vir
mostrar-me a casa.
--Sim, senhor.
O criado seguio-me, e tomámos por uma das ruas agrestes da cidade
allemã.
IV
A noite estava escura.
Era uma d'essas noites de Petropolis, envoltas de nevoeiro e cerração.
Caminhavamos mais pelo tacto do que pela vista, difficilmente
distinguiamos os objectos á uma pequena distancia; e muitas vezes,
quando o meu guia se apressava, o seu vulto perdia-se nas trevas.
Em alguns minutos chegámos em face de um pequeno edificio construido á
alguns passos do alinhamento, e cujas janellas estavam esclarecidas por
uma luz interior.
--É alli.
--Obrigado.
O criado voltou, e eu fiquei junto d'essa casa, sem saber o que ia
fazer.
A idéa de que estava perto d'ella, que via a luz que a esclarecia, que
tocava a relva que ella pisára, fazia-me feliz.
É cousa singular, minha prima! O amor, que é insaciavel e exigente,
e não se satisfaz com tudo quanto uma mulher póde dar, que deseja o
impossivel, ás vezes contenta-se com um simples gozo d'alma, com uma
d'essas emoções delicadas, com um d'esses _nadas_, dos quaes o coração
faz um mundo novo e desconhecido.
Não pense, porém, que eu fui á Petropolis só para contemplar com enlevo
as janellas de um _chalet_; não: ao passo que sentia esse prazer,
reflectia no meio de vêl-a e de fallar-lhe.
Mas como?...
Si soubesse todos os expedientes, cada qual mais extravagante, que
inventou a minha imaginação! Si visse a elaboração tenaz á que se
entregava o meu espirito para descobrir um meio de dizer-lhe que eu
estava alli e a esperava!
Por fim achei um; si não era o melhor, era o mais prompto.
Desde que chegára, tinha ouvido uns preludios de piano, mas tão debeis
que pareciam antes tirados por uma mão distrahida que roçava o teclado
do que por uma pessoa que tocasse.
Isto me fez lembrar que ao meu amor se prendia a recordação de uma
bella musica de Verdi; e foi quanto bastou.
Cantei, minha prima, ou antes assassinei aquella linda _romanza_;
os que me ouvissem tomar-me-hiam por algum furioso; mas ella me
comprehenderia.
E de facto, quando eu acabei de estropeiar esse trecho magnifico de
harmonia e sentimento, o piano, que havia emmudecido, soltou um trilho
brilhante e sonoro, que acordou os echos adormecidos no silencio da
noite.
Depois d'aquella cascata de sons magestosos, que se precipitavam
em ondas de harmonia, do seio d'aquelle turbilhão de notas, que se
cruzavam, deslisou plangente, suave e melancolica, uma voz que sentia
e palpitava, exprimindo todo o amor que respira a melodia sublime de
Verdi.
Era ella quem cantava!
Oh! não posso pintar-lhe, minha prima, a expressão profundamente
triste, a angustia de que ella repassou aquella phrase de despedida:
Non ti scordar di me
Addio!...
Partia-me a alma.
Apenas acabou de cantar, vi desenhar-se uma sombra em uma das janellas;
saltei a grade do jardim; mas as venezianas descidas não me permittiram
ver o que se passava na sala.
Sentei-me sobre uma pedra e esperei.
Não se ria, D***; estava resolvido á passar alli a noite ao relento,
olhando para aquella casa, e alimentando a esperança de que ella viria
ao menos com uma palavra compensar o meu sacrificio.
Não me enganei.
Havia meia hora que a luz da sala tinha desapparecido e que toda a casa
parecia dormir, quando abrio-se uma das portas do jardim, e eu vi ou
antes presenti a sua sombra na sala.
Recebeu-me sem sorpresa, sem temor; naturalmente e como si eu fosse seu
irmão ou seu marido. É porque o amor puro tem bastante delicadeza e
bastante confiança para dispensar o falso pejo, o pudor de convenção de
que ás vezes costumam cercal-o.
--Eu sabia que sempre havia de vir, disse-me ella.
--Oh! não me culpe! si soubesse!
--Eu culpal-o? Quando mesmo não viesse, não tinha direito de queixar-me.
--Porque não me ama!
--Pensa isto? disse-me com uma voz cheia de lagrimas.
--Não! não!... Perdôe!
--Perdôo-lhe, meu amigo, como já lhe perdoei uma vez; julga que lhe
fujo, que me occulto, porque não o amo, e entretanto não sabe que a
maior felicidade para mim seria poder dar-lhe a minha vida.
--Mas então porque esse mysterio?
--Esse mysterio, bem sabe, não é uma cousa creada por mim, e sim pelo
acaso; si o conservo é porque, meu amigo... não deve amar.
--Não a devo amar! Mas eu amo-a!...
Recostou a cabeça no meu hombro, e eu senti uma lagrima cahir sobre meu
seio.
Estava tão perturbado, tão commovido d'essa situação incomprehensivel,
que senti-me vacilar, e deixei-me cahir sobre o sofá.
Ella sentou-se junto de mim; e, tomando-me as duas mãos, disse-me um
pouco mais calma:
--Diz que me ama!
--Juro-lhe!
--Não se illude talvez?
--Si a vida não é uma illusão, respondi, penso que não, porque a minha
vida agora é você, ou antes a sua sombra.
--Muitas vezes toma-se um capricho por amor; não conhece de mim, como
diz, sinão a minha sombra!...
--Que me importa?...
--E si eu fosse feia? disse ella rindo.
--É bella como um anjo! Tenho toda a certeza.
--Quem sabe?
--Pois bem; convença-me, disse eu passando-lhe o braço pela cintura e
procurando leval-a para uma sala vizinha, d'onde filtravam os raios de
uma luz.
Desprehendeu-se do meu braço.
A sua voz tornou-se grave e triste.
--Escute, meu amigo; fallemos seriamente. Diz que me ama; eu o creio,
eu o sabia antes mesmo que me dissesse. As almas como as nossas quando
se encontram se reconhecem e se comprehendem. Mas ainda é tempo; não
julga que mais vale conservar uma recordação do que entregar-se á um
amor sem esperança e sem futuro?...
--Não, mil vezes não! Não entendo o que quer dizer; o meu amor, o meu,
não precisa de futuro e de esperança, porque o tem em si, porque viverá
sempre!...
--Eis o que eu temia; e entretanto eu sabia que assim havia de
acontecer; quando se tem a sua alma ama-se de uma só vez.
--Então porque exige de mim um sacrificio que sabe ser impossivel?
--Porque, disse ella com exaltação, porque, si ha uma felicidade
indefinivel em duas almas que ligam sua vida, que se confundem na mesma
existencia, que só têm um passado e um futuro para ambas, que desde a
flôr da idade até a velhice caminham juntas para o mesmo horizonte,
partilhando os seus prazeres e as suas magoas, revendo-se uma na
outra até o momento em que batem as azas e vão abrigar-se no seio de
Deos; deve ser cruel, bem cruel, meu amigo, quando, tendo-se apenas
encontrado, uma d'essas duas almas irmãs fugir d'este mundo, e a outra,
viuva e triste, fôr condemnada á levar sempre no seu seio uma idéa de
morte; á trazer essa recordação, que, como um crepe de luto, envolverá
a sua bella mocidade; á fazer do seu coração, cheio de vida e de amor,
um tumulo para guardar as cinzas do passado! Oh! deve ser horrivel!...
A exaltação com que fallava tinha-se tornado uma especie de delirio;
sua voz, sempre tão doce e avelludada, parecia alquebrada pelo cansaço
da respiração.
Ella cahio sobre o meu seio, agitando-se convulsivamente em um accesso
de tosse.
V
Assim ficámos muito tempo immoveis, ella com a fronte apoiada sobre meu
peito, eu sob a impressão triste de suas palavras.
Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a serenidade, disse-me em tom
doce e melancolico:
--Não pensa que melhor é esquecer do que amar assim?
--Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo immenso e um grande
consolo para a desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa
viuvez da alma separada de sua irmã, não; ahi ha um sentimento que
vive, apezar da morte, apezar do tempo. É sim esse vacuo do coração que
não tem uma affeição no mundo, e que passa como um estranho por entre
os prazeres que o cercam.
--Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada!...
--E me pedia que a esquecesse!...
--Não! não! Ama-me: quero que me ame. Ao menos...
--Não me fugirá mais?
--Não.
--E me deixará ver aquella que eu amo, e que não conheço? perguntei
sorrindo.
--Deseja?
--Supplico-lhe!
--Não sou eu sua?...
Lancei-me para a saleta onde havia luz, e colloquei o lampião sobre a
mesa do gabinete em que estavamos.
Para mim, minha prima, era um momento solemne; toda essa paixão
violenta, incomprehensivel, todo esse amor ardente por um vulto de
mulher, ia depender talvez de um olhar.
E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade,
essa visão poetica de minha imaginação, essa creação que resumia todos